sexta-feira, 4 de setembro de 2009

«It’s pretty, but is it art?»

por Mariana Pinto dos Santos

[excertos do texto publicado na revista Intervalo. - N. 1 (2005)]

[…]
Poderíamos […] concluir que a não existência de um mercado para a arte levaria ao desaparecimento quer do perito, quer do falsificador.

*

Quando F for Fake foi feito, em 1975, estava no auge toda uma série de novas propostas no campo da arte que punham em causa precisamente o mercado de que dependiam todos os peritos e todos os falsificadores.
Herdeiros do minimalismo, da action painting de Pollock, do readymade de Marcel Duchamp ou do silêncio de John Cage, influenciados por correntes filosóficas orientais, sobretudo o budismo Zen, empenhados politicamente em temas como a descolonização, a revolução social, o anti-capitalismo, o combate à guerra do Vietname, ou promotores de um regresso mítico a experiências sensoriais puras, quer através do consumo de substâncias psicotrópicas, quer através da apropriação de ritos e tradições em risco de desaparecimento, eram muitos os artistas e os movimentos artísticos que desde a década de sessenta agitavam as águas da arte contemporânea e propunham alternativas ao modernismo.
A arte Fluxus, as artes conceptuais, a land art, a arte povera, a escultura site-specific, tinham em comum a recusa de uma leitura meramente visual da obra de arte e a crítica à instituição museu, não admitindo as formas de exposição tradicionais. Se as manifestações artísticas propostas por estes movimentos se baseavam em linguagem, texto escrito, performances, ou se tinham um carácter processual, ou se a sua matéria-prima era um determinado espaço na natureza, uma determinada localização geográfica, ou se eram obras especialmente concebidas para este ou aquele sítio, ou ainda se dependiam de uma interacção com uma audiência para existirem, então não podiam continuar a ser vistas enquanto bens móveis transaccionáveis. Desmaterializadas , as obras de arte deixavam de ser bens de consumo.
Este género de propostas revolucionava também a noção de artista, no sentido de o tornarem autor de conceitos e não necessariamente de obras. Nalgumas propostas mais radicais, que encaravam a própria vida como matéria-prima da arte, sugeria-se que qualquer um poderia ser artista. Noutros casos, a aplicação de determinado conceito (lista de instruções ou indicação para determinada performance, como no caso das pequenas frases — events — de muitos artistas Fluxus) por outrem originava uma nova obra de arte, possibilitando tantas obras de arte e tantos artistas quanto o número de leituras que esse conceito permitisse. As obras dependiam da interpretação que delas se fazia, e abriam-se a múltiplas formas de existência. E o artista, por seu turno, era potencialmente todo aquele que interpretasse, que lesse a obra.
Alguma arte conceptual sugeria ainda que qualquer consideração teórico-crítica de pendor estético podia, em si mesma, ser arte, e assim toda a actividade escrita relacionada com arte seria uma intervenção de carácter artístico. Associando esta possibilidade à dimensão processual de muitas obras, quer conceptuais, quer Fluxus, quer daqui derivadas, e ao desejo por parte de muitos agentes artísticos de intervir social e politicamente e de fazer a crítica das instituições, bem como de interpelarem cada vez mais directamente o espectador, todo o dinamizador ou comissário ou promotor artístico poderia também ser considerado artista. Mesmo as formas mais puristas de arte conceptual, que recusavam um carácter político e se diziam empenhadas numa pesquisa tautológica sobre a natureza da arte, encarando-a enquanto definição linguística, visavam alcançar uma autonomia total em relação às instituições, aos críticos e ao mercado, e faziam-no através de um intelectualismo radical que atacava os protagonistas convencionais do mundo da arte .
Em tais propostas artísticas parece não haver lugar para peritos ou falsificadores. Ou haverá? Sendo mais ambiciosas e determinativas nos seus objectivos e reivindicações, haverá, pelo menos, uma maior visibilidade das contradições que a curto prazo se verificaram inevitáveis. Por exemplo, quanto à forma como alguns eventos ou artistas eram financiados, como aconteceu com a famosa exposição de 1969 comissariada por Harald Szeemann, When Attitudes Become Form: Works-Processes-Concepts-Situations-Information. Live in your Head, em Berna (e mais tarde em Londres), subsidiada pela Phillip Morris.
[…]
O acolhimento das artes experimentais e conceptuais pelas instituições, pelas colecções, pelo mercado, formatou-as às regras de transacção de bens que estas entidades aplicam, e que provam ser suficientemente maleáveis para se aplicarem a arte não objectual. Ou seja, os valores de unicidade e originalidade de que dependia o mercado mantêm-se, e são por ele adoptados para a transacção das obras que pretendiam atacar esses mesmos valores. Donde se conclui que a necessidade de peritos não desaparece, pelo contrário. E onde existem peritos, onde existe um mercado, existirão também, com certeza, falsificadores.

*

Em Portugal, em 1975, houve alguém que insistiu em fazer pintura de uma forma peculiar.
Eduardo Batarda permaneceu longe do furor que então se vivia nalguns sectores artísticos, que recebiam avidamente os ecos da arte experimental e conceptual e contribuíam para a revolução artística no nosso país, tentando conduzi-la a par da revolução social. A arte portuguesa vinha ela própria sofrendo inovações muito significativas desde a segunda metade dos anos sessenta, e o encontro com algumas propostas artísticas estrangeiras exacerbava uma tendência já iniciada antes para romper com as convenções. Nos anos 70, José Ernesto de Sousa assumiu posição de destaque na divulgação das artes conceptuais e experimentais em Portugal, promovendo exposições de artistas estrangeiros no país, levando artistas portugueses a expor no estrangeiro, e dinamizando toda a espécie de encontros, conversas, festas e convívios.
Entre 1971 e 1974, Batarda viveu em Londres, e estudou no Royal College of Art enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Regressou em 1974 e começou a escrever crítica de arte para o semanário humorista Sempre Fixe em Novembro desse mesmo ano e até Agosto do ano seguinte. A crítica que faz revela-se contundente e muitas vezes arrasadora, não hesitando em classificar, por exemplo, a pintura de Ruy Leitão de «terapêutica ocupacional» ou em denunciar a «fraca qualidade» da pintura de Pedro Chorão . Apesar de corrosiva, é uma crítica fundamentada e com um nível argumentativo e analítico bastante raro nestes anos entre os que escreviam sobre arte, sobretudo no que diz respeito à pintura. Aliás, não se coíbe de criticar a escrita de José-Augusto França, nomeadamente um texto para o catálogo de uma exposição do pintor Vasco Costa em que usara expressões como «estados de alma» para falar da obra do artista. Batarda escreve: «[…] vemos bem como a aplicação de tais noções abre caminho a todos os psicologismos de quinta ordem, a todos os lugares-comuns sub-românticos: como que quer perpetuar todas as ideias feitas que há décadas (ou séculos) deveriam ter desaparecido sobre o artista bronco e sensível. Estados de alma! Ainda haverá pachorra para nos aproximarmos de pintura nestes termos? Para a fazermos com tais premissas?»
[…]
Se Ernesto de Sousa tinha inicialmente assinalado com satisfação o aparecimento do crítico Eduardo Batarda nas páginas do Sempre Fixe , depressa se terá sentido visado nos textos por ele assinados, próximo que era das actividades do Grupo Acre por ele fortemente criticado, e da Galeria Opinião (ou Clube-Encontro Opinião), que ajudara a formar e em cuja programação colaborava. Foi uma outra crítica, porém, que originou uma resposta directa. Batarda põe em causa a pertinência de uma exposição no Museu de Arte Antiga em que fora pedido a artistas contemporâneos um comentário, ou uma obra que se inspirasse no tríptico As Tentações de Santo Antão de Jerónimo Bosch, exposição em que Ernesto tivera um papel preponderante de dinamizador e onde participaria com a encenação de um espectáculo de encerramento, “Jeronimus Bosch — um Mistério que Deixou de Ser”. Classifica de «cena triste» o que se mostrava de contemporâneo na sala do Museu de Arte Antiga, num ambiente de «generalizada mediocridade», aumentado por uma «abertura» da mostra, a determinado ponto, a todos os artistas que nela quisessem participar. E o motivo maior do falhanço terá sido, diz Batarda: «o contraste entre a extrema modéstia informativa (informacional) e criativa dos intervenientes e das condições que os fazem aparecer, com a relativa imodéstia do “tema” que lhes foi proposto» […]
Ernesto responde, acusando-o de cair frequentemente em «tentações», algumas remontando ao mais puro academismo.
[…]
Não há uma resposta directa de Batarda a Ernesto, mas há uma nova crítica ao Grupo Acre, que é, certamente, uma das mais eficazes na desmitificação dos desmitificadores que vinha fazendo nas páginas do Sempre Fixe. Nele comenta-se a ocupação por parte do Grupo Acre e de outros artistas de um palacete em Lisboa, com o objectivo de ali fazerem um Museu de Arte Moderna.
"[…] no meio de argumentações em que são amalgamados o falar em revolução, em povo sedento de Arte ou vice-versa, com referências às actividades vanguardistas, como ainda às graciosas (e nada narcisísticas) previsíveis cedências de peças por parte de artistas (mortos por colaborar), como, dizia, todo este fervilhar de anseios, todo este vibrar de criatividades generosas e desinteressadas sente, assim vanguardisticamente, a necessidade de quê? Pois claro que de um museu.
[…] é, digo, pelo menos curioso que, antecipando-se às ânsias e furores artísticos do povo alfacinha, tenham sido “os artistas” a sentir necessidade de um museu. Dir-me-ão: se ninguém trata de tal, quem melhor que nós, etc. e por aí a diante. Eu direi: não se nega, então eu, que não, que não, a necessidade do dito monumento, pois. Apenas, já estava dito até, será de notar a possibilidade de conotações de autopedestalismo contidas neste gesto, que, por outro lado (e se estivermos virados para isso), poderá ser tomado como “artístico”, numa habitual linha “europeia” e pós-conceptual, isto por mor das tais referências cultas.
[…] Qual a “participação popular” esperada, prevista ou desejada? […]
Se não ficarem com o prédio, que tal sugerir ao povo da capital que, em massa, de archote em punho, indignado mas sempre doidinho por quadros a óleo e gessos patinados, se levante e ocupe, conquiste um palacete qualquer, ou este mesmo, e o entregue entre lágrimas aos seus artistas queridos? Será de começar já a agitpropar por isto?
[…] Povo de Lisboa, os artistas plásticos querem ofertar-te obras de arte. A tua resposta estará na tua mais espontânea indiferença ou no teu mais incondicional apoio. Se estás neste último pé esperamos-te a manifestar, com diplomas de artista, retratos do Almada Negreiros, cravos vermelhos, o presente número do Fixe, reproduções do Querubim Lapa e tarjetas, a distribuir, com os dizeres: «a Arte não morreu, já temos o museu», ou coisa que o valha […].
Que a paz seja convosco, que o génio impere na dómus mendôncica, que os artistas por lá dêem tudo por tudo. Caso não consigam permanência, irmãos amantíssimos, reivindiquemos em uníssono com o já convocado povo lisboeta, uma qualquer forma de substituição. Porque não, por exemplo (Maomé e a montanha), na impossibilidade do solar (caramba!), um sistema do género Bibliotecas Itinerantes?
Seria uma engenhosa forma de levar a Arte à Brandoa ou ao Intendente, à Travessa do Fala-Só ou ao Entalado, que permitiria no fictício caso da Srª D. Angélica Moreira, doméstica e moradora no nº 312, 7ºF da Travessa do Enviado de Inglaterra, inscrita nos artistas com três meses de antecedência, ser agradavelmente surpreendida às nove e meia em ponto da manhã de uma quarta-feira, pelo piquete de urgência do Serviço Museus Vivos e Abertos do Conselho Visual Revolucionário, que, sorridente, lhe anunciaria os dois últimos Nikias, uma cópia da mais recente palestra de Sallete Tavares, a gravura tão chistosa de Figueiredo Sobral, ou o Conduto de 1958 que ela tinha requisitado. Angélica furtaria assim à lida da casa aquele tão desejado quarto de hora, enquanto um grupo intervencionista-vanguardista-envolvimentista a brindaria em paralelo com uma actuação ao vivo e ao domicílio. […]”

*

Porém, Eduardo Batarda não se limitava à palavra escrita nesta desmitificação dos desmitificadores. As suas pinturas destes anos — aguarelas de cores saturadas, pormenorizadas ao nível do detalhe quase microscópico, com recurso a uma figuração bebida nos comics — também tratam, sobretudo, de arte. Fazem-no, porém, aglutinando os comentários à história de arte com várias outras referências eruditas e populares (políticas, literárias, cinéfilas, pornográficas, autobiográficas, etc.), misturando-os sem distinção hierárquica, naquilo que é claramente uma influência da Pop britânica, que de resto esteve muito presente na sua formação londrina. E esta mistura funciona não só ao nível imagético, mas também com a palavra escrita, pois por entre as figuras e situações satíricas que Batarda desenha, surgem frases, ou palavras, que numa primeira leitura têm a aparente função de legendas das figuras. No entanto, constata-se, em variados casos, que a sua presença é uma intromissão desconcertante no quadro, com poder evocativo e associativo entre temas totalmente díspares.
[…]
É na montagem de referências, no jogo de espelhos entre citações, no entrelaçamento entre farsa e verdade que Batarda denuncia os problemas postos pela arte contemporânea e expõe a sua própria fragilidade enquanto comentador das artes por via pictórica. Tal como em F for Fake, é através da manipulação de informação, do forjar de associações, ou da falsificação de citações que são colocadas as mais incómodas questões à arte. O falso é usado para desmascarar o falso.

*

«WHEN the flush of a newborn sun fell first on Eden's green and gold,
Our father Adam sat under the Tree and scratched with a stick in the mold;
And the first rude sketch that the world had seen was joy to his mighty heart,
Till the Devil whispered behind the leaves: “It’s pretty, but is it Art?”»
Rudyard Kipling, The Conundrum of the Workshops

[…] Na sua crítica, escrita e pintada, Eduardo Batarda coloca esta interrogação para tudo quanto comenta, mas sobretudo a si mesmo, à sua pintura.
Batarda mostra o falso das propostas artísticas que propunham revolucionar a recepção da arte, tal como estas haviam denunciado os mecanismos de funcionamento das vanguardas tradicionais e sua progressiva academização. Mas seria possível regressar à forma como se fazia pintura antes da emergência das propostas conceptuais e experimentais? A pintura de Batarda responde que não. Porque esta componente de leitura, estas narrativas que enformam as suas aguarelas, espelham elas próprias a inevitável influência que aquelas propostas tiveram sobre si. A capacidade da pintura incarnar o texto, funcionando como crítica, ensaio, reflexão sobre arte, a possibilidade de encarar o comentário teórico à arte como obra de arte em si mesmo, provém, nada mais, dos alvos das suas críticas. Batarda nega, também ele, o estatuto meramente visual da pintura, introduzindo-lhe uma componente linguística essencial e utilizando-a sempre, em última análise, como tautologia auto-referencial . A pintura toma o lugar de um texto crítico, e no entanto vai para além do texto escrito. Enquanto imagem, enquanto combinação de imagem e palavra, imagem/legenda, a crítica de arte adquire um carácter lúdico, não deixando de ser mordaz, eficaz e eloquente, mas permitindo a ausência de uma argumentação que defina uma alternativa. O seu discurso existe a partir de um vazio (de utopia, de ideologia, de crença).
Se Batarda dispara em todas as direcções na sua pintura, muitas vezes a sátira última a descortinar nas aguarelas é a si próprio, e à sua condição de pintor. Pois é através da crítica a outrem que alcança a autocrítica mais feroz: a da impossibilidade da pintura, a do vazio a partir do qual se constrói o seu discurso pictórico, a da incapacidade de se afirmar sem ser através da negação dos outros. É a ideia de morte da pintura que é constantemente comentada e vivida nos seus quadros, e também parodiada. O luto é curto e também ele é uma farsa: a pintura seguinte, a impossibilidade de parar de pintar, provam-no.

Em La Ricotta (1962) de Pier Paolo Pasolini, com Orson Welles no papel de um realizador de cinema que faz um filme sobre a Paixão de Cristo com actores amadores, o homem que fazia de ladrão bom, um pobre esfomeado, acaba por morrer de indigestão, preso à cruz onde devia representar o seu papel. E o realizador, Welles, repara então nele e diz: «morrer foi a única forma de afirmar que também ele estava vivo».
Nas aguarelas de Batarda (e na sua pintura posterior), morrer repetidamente é também a única forma da pintura provar que está viva.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Desenho em movimento – Stuart de Zepe

por Luís Henriques
[texto publicado na revista Intervalo. - N.3]

Em Degas, Danse, Dessin Paul Valéry assinala diferentes formas de movimento voluntário do nosso corpo. Os movimentos mais comuns têm um fim em vista, são determinados por uma relação com um objecto e pela intencionalidade – ir a este ou aquele lugar, mover esta ou aquela coisa – bem como pela economia de forças – se quero ir à Avenida da Liberdade não dou a volta ao mundo. Mas há também movimentos sem fim, sem uma intenção esgotável num objecto exterior; são «actividades que não têm por fim senão modificar o nosso sentimento de energia». Os movimentos sem fim resultam de uma super-abundância – a alegria, a cólera, a inquietude, o pensamento em efervescência – e dispensam uma energia que «nenhum acto preciso pode absorver». A Dança, tema central do texto de Valéry, organiza estas forças de dissipação segundo uma sequência de figuras que se encadeiam umas nas outras, produzindo uma «espécie de embriaguez que vai do delírio ao langor». Na sua relação íntima com a Música, o estado de dança implica uma marcação de intervalos, uma composição de acções que diz respeito ao tempo próprio do corpo, com as suas acções musculares, os seus ritmos e encadeamentos. Ao contrário do que sucede no universo comum, onde as acções têm fim, no Universo da Dança não parece haver repouso, o instável torna-se o nosso suporte .
Podemos conceber duas perspectivas para a inclusão singular do desenho nesta classe de movimentos ou neste estado de dança: o desenho será tanto uma actividade que modifica o nosso sentimento de energia – ele é, em si mesmo, um movimento sem fim, fruto de um pensamento em efervescência – como um modo de apropriação de outras manifestações do movimento, capaz de traçar e retraçar as linhas e os sentimentos de energia de outros corpos, podendo mesmo levar-nos à percepção dos seus valores-limite ou de certas subtilezas dos seus gestos mais comuns (o corpo inteiro tem, como diz Valéry, o potencial de uma máscara que se revela na mímica e no gesto; o desenho é um sensor privilegiado deste potencial).
A matéria do desenho, tal como o nosso corpo, é cúmplice e adversária da terra, aproveita e contraria a gravidade; o pincel move-se e o traço é o indício do seu próprio movimento. Para além disso pode ser o traço de outros corpos. Se cada desenho é traço de si mesmo, e de algo mais, a sequência introduzida pela animação tende a multiplicar as possibilidades desse traçar. A sequência animada oferece a possibilidade de ver, no tempo, as figuras descreverem um desenho no espaço ou o próprio desenho do espaço (ou de um lugar, no nosso caso: a cidade antiga de Lisboa, desenhada por uma sombra que sobe degraus num labirinto, depois de perder um barco). Mesmo conhecendo o laborioso processo de execução e montagem implicados no cinema de animação, somos envolvidos pela impressão de estar a surpreender, a cada momento, o desenho no seu próprio curso. Ou melhor, pela impressão de que o desenho compreende bem os movimentos e como tal o seu próprio movimento. Por ser animado pelas mesmas energias que percorrem os corpos, o desenho é mimético. Não por ser uma câmara clara, mas por ser empático, por conter uma certa dose de «erro pessoal» que transforma o visto no vivido .

O filme Stuart é uma experiência quase musical ou, como sugere o seu autor, «coreográfica» . A imagem a preto e branco intensifica as possibilidades de modulação do espaço em signos, «como uma escrita corrida ou uma caligrafia em movimento» . As personagens criadas no papel por Stuart de Carvalhais aparecem no filme por vezes em continuidade, por vezes em ruptura com o fundo da tela. A substância comum ao polícia, às telhas ou aos fugitivos altera-se rapidamente à nossa frente: o que é agora um vidro quebrado, ou uma telha opaca saltando como uma tecla à passagem de Quim e Manecas, era ainda há pouco o céu onde flutuava um balão lunar. Alguém bebe, no momento seguinte a rua e a casa estarão bêbadas. Dificilmente a imagem real consegue uma transição tão justa de um ponto de vista exterior – os homens e as suas mãos, a garrafa e os copos – para a visão do próprio homem, ou até das suas mãos, destas pedras e deste chão ondulante, absurdamente próximos . O corpo balança, o chão balança, entre este dois balanceares, por vezes harmónicos, por vezes desarmónicos, somos projectados para onde não esperávamos: aí está a lâmpada do tecto vista de cima (seria possível um olhar mais próximo da embriaguez?).
Do ponto de vista do ambiente, de uma certa atmosfera psicológica, o desenho avança entre contrastes. Voltamos à ideia da superabundância: o desenho é desde o início – e talvez de modo ainda mais notório na animação – um excesso de energia. No entanto, os movimentos que traça podem revelar o abatimento progressivo dos corpos. Esta ambivalência é um dos elementos mais pronunciados de Stuart. A palavra ao autor:
"A decisão de realizar um filme de animação sobre Stuart de Carvalhais assenta em dois pressupostos. O primeiro diz respeito ao próprio universo gráfico do artista, à tinta-da-china e à sua economia, capaz de captar as deambulações por Lisboa numa visão impressionista de personagens, ambientes e situações. O segundo advém de uma história mergulhada nas situações correntes do dia-a-dia, vividas em declínio lento, num espaço social e de trabalho alheio às elites culturais e à categoria de artista consagrado (isto apesar do enorme talento de Stuart).
A característica de looser talentoso, no pano de fundo das décadas de 30 a 50, numa Lisboa ignorada e fechada sobre si mesma, tornou-se um veio principal do filme, estendendo-se em torno da fuga e da diluição."
Na verdade a dispensa de energia, do traço a negro, não desaparece por causa deste veio principal, ou ambiental, mesmo quando se tornam cada vez mais evidentes as situações de declínio, violência e bloqueio. Os onze minutos de filme passam numa corrente de imagens que não preenche os moldes comuns de uma história, pelo contrário: «a supressão e a mutação das formas» constituem a base de desenvolvimento para a narrativa (se existe uma biografia ou um episódio, mesmo imaginários, não são prévios ao desenho de espaços e acções) . O filme segue uma intuição: antes de termos uma história, um certo contexto narrativo, há movimentos e projecções, presenças e elipses de corpos e espaços. Algo de originário – um “cinzento” que é neste caso quase “branco” – é sacudido, dobrado e virado do avesso pela percussão ou pela vibração do negro. Talvez exista mesmo um pictograma, ou um engrama, uma manifestação psíquica, que entra em ressonância com os pictogramas, mais evidentes, deste filme . Talvez essa imagem obscura do que um corpo consegue representar – ou do que um corpo não pode deixar de representar – virado para o amor e para a morte, encontre nesta coreografia uma ressonância, oferecendo-nos a imagem vigorosa do poder do desenho. Aquilo que pressentimos em nós como o instável.

Conferências de Arasse e Didi-Huberman

Interpréter l'art : entre voir et savoirs - conferência de Daniel Arasse disponível aqui.

Connaissance par les montages et politiques de l'imagination - conferência de Georges Didi-Huberman disponível aqui.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Uma entrada para Entrada. Amadeo, a historiografia e os territórios da pintura

por Joana Cunha Leal

[Excertos do texto a publicar na revista Intervalo. - N. 4 (no prelo)
]

[...] voltando ao caso específico de Amadeo, quero reforçar a ideia da desajustada insularidade a que ambas as leituras votam a sua pintura. Creio mesmo que esse fechamento produziu uma inesperada incapacidade de ver as obras, porque eliminou à partida a possibilidade de uma leitura referenciada num contexto (já vimos como a ideia de uma meta-pintura, desconectada do referente externo, não deixa de produzir alguma perplexidade perante obras como Caixa registadora ou Coty). Há como que a interposição de um ecrã entre o observador e pinturas como Entrada, um ecrã que impede de ver – não se vê de todo –, por exemplo, que o pequeno pedaço de vidro rectangular incrustado um pouco à esquerda do centro da tela tem as cores da bandeira portuguesa…
Recupero aqui, então, a descrição de Rui Afonso Santos, onde encontramos uma chamada de atenção para uma série de novos elementos da pintura, nomeadamente, “uma misteriosa máquina, tipo caixa registadora, com o número 2 inscrito e com ossos em vez de chaves” que “emite uma forte luz que atrai os insectos e o sinal com a palavra ENTRADA”. A bandeira de Portugal que R.A. Santos não viu está representada precisamente no centro dessa misteriosa máquina, que, quanto a mim, pode ser também lida como uma representação (metonímica) de um transatlântico. Passo a explicar.
Creio que encontramos em Entrada uma série de signos que, em conjunto, nos oferecem uma narrativa, por fragmentos, da entrada de Portugal (e dos Estados Unidos, como veremos) na 1ª Grande Guerra. Esta narrativa terá tido muito provavelmente um carácter comemorativo – é conhecido o entusiasmo militarista que Amadeo partilha com os artistas da sua geração –, mas inclui também a referência ao episódio perturbador e, à distância, caricatural, da acusação de espionagem que nesse contexto recaiu sobre Sonia Delaunay – episódio em que Amadeo esteve fortemente envolvido, responsável maior que foi pela defesa de Sonia .
Remonta-se assim aos primeiros dias Abril de 1916, quando um denunciador dá como certa, a troco de 3 000 francos de recompensa, a passagem de informação encriptada por Sonia aos submarinos alemães situados ao largo do Atlântico a partir dos célebres ‘discos simultâneos’. Nas palavras de P. Ferreira:
“Robert Delaunay ayant dû répondre à une convocation de conseil de révision [relacionado com a sua dispensa de serviço militar], le couple […] a quitté Vila do Conde pour Vigo. Environs trois semaines plus tard, Sonia revient à Vila do Conde afin de préparer une malle qu’elle désire faire transporter à Vigo par les soins de Beatris [sic], qui doit partir la première. Ceci fait, elle se rend à Porto pour faire renouveler son passeport. C’est alors qu’on lui signifie qu’elle est sous le coup d’une accusation d’espionnage, émanant, croit-on, d’un secrétaire du Consulat de France, désireux de toucher la prime de 3 000 francs-or, récompense attribuée, en ce temps de guerre, à ceux qui démasquent les ennemis de la patrie. Cette dénonciation s’appuie sur le fait que les Delaunay sont venus s’installer tout près du rivage dans le but de communiquer des renseignements aux sous-marins allemands qui croisent au large, en utilisant, comme signaux, les célèbres ‘disques simultanés’, qui sont des éléments essetiels de leurs tableaux. Si saugrenue que nous paraisse la chose avex le recul des années, il ne faut pas oublier que la psychose de ‘espionnite’ régnait alors partout” (cf. P. Ferreira, 1972: 52-53) .

São reconhecíveis, na tela de Amadeo, a torre e o periscópio de um submarino com as cores alemãs enquadrados pelo jacto de luz que nasce no centro da composição e desce até ao letreiro com a palavra ENTRADA, a sugestão de um interior iluminado por uma lâmpada eléctrica desenhada a partir do catálogo da Wotan – a que Rui Afonso Santos (1999: 176) se referira como uma espécie de pega ou um puxador – e separado da escuridão nocturna pelas linhas horizontais de uma persiana dourada – que na mesma descrição é identificada como um “instrumento disposto horizontalmente”. Lá estão também os discos de cor (com os insectos ‘na mouche’) que, partindo das investigações órficas de Robert Delaunay, a pintura de Sónia, tal como a do próprio Amadeo, tinham incorporado. E mesmo os números que Amadeo inscreve no topo da tela parecem remeter para a soma atribuível ao acusador. Lá está finalmente, desenhado sobre fundo azul, e aqui reencontro o jacto de luz central na sua fonte, o perfil do transatlântico, muito possivelmente o Lusitania – as cores da bandeira nacional pintadas sobre um rectângulo de vidro inscrustado no casco sugerem o nome do barco inglês –, com as suas imponentes quatro torres (duas pintadas, as restantes duas evocadas pelo o número 2) afundado por um submarino alemão, num episódio trágico que despoletou a intervenção militar dos EUA na Guerra . Porém, é bom não esquecer que a própria entrada de Portugal na Guerra esteve, no imediato, associada à nacionalização dos barcos alemães retidos nos portos portugueses desde o início do conflito.
[...]
Para além de BRUT 300 TSF, onde o motivo da telegrafia sem fios se associa à vista parcial de um jornal pintado, e dos já mencionados Máquina registadora e Coty, é em em Zinc (Pintura 195 do Catálogo Raisonné; Col. Engº Elídio Pinho, Porto) que essa referência contextual [da Guerra] volta a ser mais forte. Esta tela integra, para além da representação de “violas, ‘discos’, uma cabeça carnalmente pintada, e espelhos colados”, a “imagem de um Cristo crucificado sob a palavra ‘zinc’ (certamente no sentido de ‘taberna’ no calão francês)” (J.-A. França, 1986 [1957]: 131). Com esta imagem Amadeo evoca de perto o potencial de crueza do pintor chinês imaginado por Blaise Cendrars num café (taberna?) nova iorquino povoado de chineses em “Les Paquês” (1912).
Escreve Cendrars: “Ho-Kousai pintou os cem aspectos de uma montanha. Como seria a vossa Face pintada por um chinês?…/ Esta ideia, Senhor, fez-me primeiro sorrir. Via-vos em ponto pequeno no vosso martírio./ O pintor, pintaria o vosso tormento Com maior crueza do que os nossos pintores do Ocidente. / Lâminas denteadas serrariam a vossa carne, Tenazes e cardadoras abririam estrias nos vossos nervos”.
Amadeo refere directamente este poema em carta a Robert Delaunay datada por P. Ferreira (1972: 71-72) de 16 de Junho de 1916. Uma carta onde, curiosamente, Amadeo dá conta da sua dificuldade em encontrar alumínio e folha de flandres para a execução de escantilhões, e em que se queixa “quant à la feuille, les idiots m’envoient un échantillon de zinc.” (idem: 72). Este Cristo de Amadeo trespassado de tenazes e cardadoras, a que J.-A. França atribui uma “violência expressionista” (1992: 25), remete-nos também para o crucifixo devocional que acompanhou os combatentes do CEP na frente de batalha. Nas imagens que circulam das “Trincheiras portuguesas” em periódicos de grande tiragem como a Ilustração Portuguesa, a imagem do Cristo de Neue Chapelle aparece diversas vezes acompanhado com legendas que o apresentam como: “Um Cristo respeitado pelas granadas, atiradas pelos alemães contra as trincheiras portuguesas” (7 Jan. 1918: 1). A imagem do alto crucifixo que domina a paisagem da primeira linha do front reaparece na Ilustração Portuguesa a 21 de Jan. e 6 de Maio de 1918. Esta última imagem não contempla os danos que lhe infligiram os bombardeamentos de 9 de Abril (La Lys) e que estão na origem da sua transformação no mítico e muito, muito impressionante “Cristo das Trincheiras” (actualmente em exposição no Túmulo do Soldado Desconhecido no Mosteiro da Batalha)."