quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Desenho em movimento – Stuart de Zepe

por Luís Henriques
[texto publicado na revista Intervalo. - N.3]

Em Degas, Danse, Dessin Paul Valéry assinala diferentes formas de movimento voluntário do nosso corpo. Os movimentos mais comuns têm um fim em vista, são determinados por uma relação com um objecto e pela intencionalidade – ir a este ou aquele lugar, mover esta ou aquela coisa – bem como pela economia de forças – se quero ir à Avenida da Liberdade não dou a volta ao mundo. Mas há também movimentos sem fim, sem uma intenção esgotável num objecto exterior; são «actividades que não têm por fim senão modificar o nosso sentimento de energia». Os movimentos sem fim resultam de uma super-abundância – a alegria, a cólera, a inquietude, o pensamento em efervescência – e dispensam uma energia que «nenhum acto preciso pode absorver». A Dança, tema central do texto de Valéry, organiza estas forças de dissipação segundo uma sequência de figuras que se encadeiam umas nas outras, produzindo uma «espécie de embriaguez que vai do delírio ao langor». Na sua relação íntima com a Música, o estado de dança implica uma marcação de intervalos, uma composição de acções que diz respeito ao tempo próprio do corpo, com as suas acções musculares, os seus ritmos e encadeamentos. Ao contrário do que sucede no universo comum, onde as acções têm fim, no Universo da Dança não parece haver repouso, o instável torna-se o nosso suporte .
Podemos conceber duas perspectivas para a inclusão singular do desenho nesta classe de movimentos ou neste estado de dança: o desenho será tanto uma actividade que modifica o nosso sentimento de energia – ele é, em si mesmo, um movimento sem fim, fruto de um pensamento em efervescência – como um modo de apropriação de outras manifestações do movimento, capaz de traçar e retraçar as linhas e os sentimentos de energia de outros corpos, podendo mesmo levar-nos à percepção dos seus valores-limite ou de certas subtilezas dos seus gestos mais comuns (o corpo inteiro tem, como diz Valéry, o potencial de uma máscara que se revela na mímica e no gesto; o desenho é um sensor privilegiado deste potencial).
A matéria do desenho, tal como o nosso corpo, é cúmplice e adversária da terra, aproveita e contraria a gravidade; o pincel move-se e o traço é o indício do seu próprio movimento. Para além disso pode ser o traço de outros corpos. Se cada desenho é traço de si mesmo, e de algo mais, a sequência introduzida pela animação tende a multiplicar as possibilidades desse traçar. A sequência animada oferece a possibilidade de ver, no tempo, as figuras descreverem um desenho no espaço ou o próprio desenho do espaço (ou de um lugar, no nosso caso: a cidade antiga de Lisboa, desenhada por uma sombra que sobe degraus num labirinto, depois de perder um barco). Mesmo conhecendo o laborioso processo de execução e montagem implicados no cinema de animação, somos envolvidos pela impressão de estar a surpreender, a cada momento, o desenho no seu próprio curso. Ou melhor, pela impressão de que o desenho compreende bem os movimentos e como tal o seu próprio movimento. Por ser animado pelas mesmas energias que percorrem os corpos, o desenho é mimético. Não por ser uma câmara clara, mas por ser empático, por conter uma certa dose de «erro pessoal» que transforma o visto no vivido .

O filme Stuart é uma experiência quase musical ou, como sugere o seu autor, «coreográfica» . A imagem a preto e branco intensifica as possibilidades de modulação do espaço em signos, «como uma escrita corrida ou uma caligrafia em movimento» . As personagens criadas no papel por Stuart de Carvalhais aparecem no filme por vezes em continuidade, por vezes em ruptura com o fundo da tela. A substância comum ao polícia, às telhas ou aos fugitivos altera-se rapidamente à nossa frente: o que é agora um vidro quebrado, ou uma telha opaca saltando como uma tecla à passagem de Quim e Manecas, era ainda há pouco o céu onde flutuava um balão lunar. Alguém bebe, no momento seguinte a rua e a casa estarão bêbadas. Dificilmente a imagem real consegue uma transição tão justa de um ponto de vista exterior – os homens e as suas mãos, a garrafa e os copos – para a visão do próprio homem, ou até das suas mãos, destas pedras e deste chão ondulante, absurdamente próximos . O corpo balança, o chão balança, entre este dois balanceares, por vezes harmónicos, por vezes desarmónicos, somos projectados para onde não esperávamos: aí está a lâmpada do tecto vista de cima (seria possível um olhar mais próximo da embriaguez?).
Do ponto de vista do ambiente, de uma certa atmosfera psicológica, o desenho avança entre contrastes. Voltamos à ideia da superabundância: o desenho é desde o início – e talvez de modo ainda mais notório na animação – um excesso de energia. No entanto, os movimentos que traça podem revelar o abatimento progressivo dos corpos. Esta ambivalência é um dos elementos mais pronunciados de Stuart. A palavra ao autor:
"A decisão de realizar um filme de animação sobre Stuart de Carvalhais assenta em dois pressupostos. O primeiro diz respeito ao próprio universo gráfico do artista, à tinta-da-china e à sua economia, capaz de captar as deambulações por Lisboa numa visão impressionista de personagens, ambientes e situações. O segundo advém de uma história mergulhada nas situações correntes do dia-a-dia, vividas em declínio lento, num espaço social e de trabalho alheio às elites culturais e à categoria de artista consagrado (isto apesar do enorme talento de Stuart).
A característica de looser talentoso, no pano de fundo das décadas de 30 a 50, numa Lisboa ignorada e fechada sobre si mesma, tornou-se um veio principal do filme, estendendo-se em torno da fuga e da diluição."
Na verdade a dispensa de energia, do traço a negro, não desaparece por causa deste veio principal, ou ambiental, mesmo quando se tornam cada vez mais evidentes as situações de declínio, violência e bloqueio. Os onze minutos de filme passam numa corrente de imagens que não preenche os moldes comuns de uma história, pelo contrário: «a supressão e a mutação das formas» constituem a base de desenvolvimento para a narrativa (se existe uma biografia ou um episódio, mesmo imaginários, não são prévios ao desenho de espaços e acções) . O filme segue uma intuição: antes de termos uma história, um certo contexto narrativo, há movimentos e projecções, presenças e elipses de corpos e espaços. Algo de originário – um “cinzento” que é neste caso quase “branco” – é sacudido, dobrado e virado do avesso pela percussão ou pela vibração do negro. Talvez exista mesmo um pictograma, ou um engrama, uma manifestação psíquica, que entra em ressonância com os pictogramas, mais evidentes, deste filme . Talvez essa imagem obscura do que um corpo consegue representar – ou do que um corpo não pode deixar de representar – virado para o amor e para a morte, encontre nesta coreografia uma ressonância, oferecendo-nos a imagem vigorosa do poder do desenho. Aquilo que pressentimos em nós como o instável.

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