sexta-feira, 4 de setembro de 2009

«It’s pretty, but is it art?»

por Mariana Pinto dos Santos

[excertos do texto publicado na revista Intervalo. - N. 1 (2005)]

[…]
Poderíamos […] concluir que a não existência de um mercado para a arte levaria ao desaparecimento quer do perito, quer do falsificador.

*

Quando F for Fake foi feito, em 1975, estava no auge toda uma série de novas propostas no campo da arte que punham em causa precisamente o mercado de que dependiam todos os peritos e todos os falsificadores.
Herdeiros do minimalismo, da action painting de Pollock, do readymade de Marcel Duchamp ou do silêncio de John Cage, influenciados por correntes filosóficas orientais, sobretudo o budismo Zen, empenhados politicamente em temas como a descolonização, a revolução social, o anti-capitalismo, o combate à guerra do Vietname, ou promotores de um regresso mítico a experiências sensoriais puras, quer através do consumo de substâncias psicotrópicas, quer através da apropriação de ritos e tradições em risco de desaparecimento, eram muitos os artistas e os movimentos artísticos que desde a década de sessenta agitavam as águas da arte contemporânea e propunham alternativas ao modernismo.
A arte Fluxus, as artes conceptuais, a land art, a arte povera, a escultura site-specific, tinham em comum a recusa de uma leitura meramente visual da obra de arte e a crítica à instituição museu, não admitindo as formas de exposição tradicionais. Se as manifestações artísticas propostas por estes movimentos se baseavam em linguagem, texto escrito, performances, ou se tinham um carácter processual, ou se a sua matéria-prima era um determinado espaço na natureza, uma determinada localização geográfica, ou se eram obras especialmente concebidas para este ou aquele sítio, ou ainda se dependiam de uma interacção com uma audiência para existirem, então não podiam continuar a ser vistas enquanto bens móveis transaccionáveis. Desmaterializadas , as obras de arte deixavam de ser bens de consumo.
Este género de propostas revolucionava também a noção de artista, no sentido de o tornarem autor de conceitos e não necessariamente de obras. Nalgumas propostas mais radicais, que encaravam a própria vida como matéria-prima da arte, sugeria-se que qualquer um poderia ser artista. Noutros casos, a aplicação de determinado conceito (lista de instruções ou indicação para determinada performance, como no caso das pequenas frases — events — de muitos artistas Fluxus) por outrem originava uma nova obra de arte, possibilitando tantas obras de arte e tantos artistas quanto o número de leituras que esse conceito permitisse. As obras dependiam da interpretação que delas se fazia, e abriam-se a múltiplas formas de existência. E o artista, por seu turno, era potencialmente todo aquele que interpretasse, que lesse a obra.
Alguma arte conceptual sugeria ainda que qualquer consideração teórico-crítica de pendor estético podia, em si mesma, ser arte, e assim toda a actividade escrita relacionada com arte seria uma intervenção de carácter artístico. Associando esta possibilidade à dimensão processual de muitas obras, quer conceptuais, quer Fluxus, quer daqui derivadas, e ao desejo por parte de muitos agentes artísticos de intervir social e politicamente e de fazer a crítica das instituições, bem como de interpelarem cada vez mais directamente o espectador, todo o dinamizador ou comissário ou promotor artístico poderia também ser considerado artista. Mesmo as formas mais puristas de arte conceptual, que recusavam um carácter político e se diziam empenhadas numa pesquisa tautológica sobre a natureza da arte, encarando-a enquanto definição linguística, visavam alcançar uma autonomia total em relação às instituições, aos críticos e ao mercado, e faziam-no através de um intelectualismo radical que atacava os protagonistas convencionais do mundo da arte .
Em tais propostas artísticas parece não haver lugar para peritos ou falsificadores. Ou haverá? Sendo mais ambiciosas e determinativas nos seus objectivos e reivindicações, haverá, pelo menos, uma maior visibilidade das contradições que a curto prazo se verificaram inevitáveis. Por exemplo, quanto à forma como alguns eventos ou artistas eram financiados, como aconteceu com a famosa exposição de 1969 comissariada por Harald Szeemann, When Attitudes Become Form: Works-Processes-Concepts-Situations-Information. Live in your Head, em Berna (e mais tarde em Londres), subsidiada pela Phillip Morris.
[…]
O acolhimento das artes experimentais e conceptuais pelas instituições, pelas colecções, pelo mercado, formatou-as às regras de transacção de bens que estas entidades aplicam, e que provam ser suficientemente maleáveis para se aplicarem a arte não objectual. Ou seja, os valores de unicidade e originalidade de que dependia o mercado mantêm-se, e são por ele adoptados para a transacção das obras que pretendiam atacar esses mesmos valores. Donde se conclui que a necessidade de peritos não desaparece, pelo contrário. E onde existem peritos, onde existe um mercado, existirão também, com certeza, falsificadores.

*

Em Portugal, em 1975, houve alguém que insistiu em fazer pintura de uma forma peculiar.
Eduardo Batarda permaneceu longe do furor que então se vivia nalguns sectores artísticos, que recebiam avidamente os ecos da arte experimental e conceptual e contribuíam para a revolução artística no nosso país, tentando conduzi-la a par da revolução social. A arte portuguesa vinha ela própria sofrendo inovações muito significativas desde a segunda metade dos anos sessenta, e o encontro com algumas propostas artísticas estrangeiras exacerbava uma tendência já iniciada antes para romper com as convenções. Nos anos 70, José Ernesto de Sousa assumiu posição de destaque na divulgação das artes conceptuais e experimentais em Portugal, promovendo exposições de artistas estrangeiros no país, levando artistas portugueses a expor no estrangeiro, e dinamizando toda a espécie de encontros, conversas, festas e convívios.
Entre 1971 e 1974, Batarda viveu em Londres, e estudou no Royal College of Art enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Regressou em 1974 e começou a escrever crítica de arte para o semanário humorista Sempre Fixe em Novembro desse mesmo ano e até Agosto do ano seguinte. A crítica que faz revela-se contundente e muitas vezes arrasadora, não hesitando em classificar, por exemplo, a pintura de Ruy Leitão de «terapêutica ocupacional» ou em denunciar a «fraca qualidade» da pintura de Pedro Chorão . Apesar de corrosiva, é uma crítica fundamentada e com um nível argumentativo e analítico bastante raro nestes anos entre os que escreviam sobre arte, sobretudo no que diz respeito à pintura. Aliás, não se coíbe de criticar a escrita de José-Augusto França, nomeadamente um texto para o catálogo de uma exposição do pintor Vasco Costa em que usara expressões como «estados de alma» para falar da obra do artista. Batarda escreve: «[…] vemos bem como a aplicação de tais noções abre caminho a todos os psicologismos de quinta ordem, a todos os lugares-comuns sub-românticos: como que quer perpetuar todas as ideias feitas que há décadas (ou séculos) deveriam ter desaparecido sobre o artista bronco e sensível. Estados de alma! Ainda haverá pachorra para nos aproximarmos de pintura nestes termos? Para a fazermos com tais premissas?»
[…]
Se Ernesto de Sousa tinha inicialmente assinalado com satisfação o aparecimento do crítico Eduardo Batarda nas páginas do Sempre Fixe , depressa se terá sentido visado nos textos por ele assinados, próximo que era das actividades do Grupo Acre por ele fortemente criticado, e da Galeria Opinião (ou Clube-Encontro Opinião), que ajudara a formar e em cuja programação colaborava. Foi uma outra crítica, porém, que originou uma resposta directa. Batarda põe em causa a pertinência de uma exposição no Museu de Arte Antiga em que fora pedido a artistas contemporâneos um comentário, ou uma obra que se inspirasse no tríptico As Tentações de Santo Antão de Jerónimo Bosch, exposição em que Ernesto tivera um papel preponderante de dinamizador e onde participaria com a encenação de um espectáculo de encerramento, “Jeronimus Bosch — um Mistério que Deixou de Ser”. Classifica de «cena triste» o que se mostrava de contemporâneo na sala do Museu de Arte Antiga, num ambiente de «generalizada mediocridade», aumentado por uma «abertura» da mostra, a determinado ponto, a todos os artistas que nela quisessem participar. E o motivo maior do falhanço terá sido, diz Batarda: «o contraste entre a extrema modéstia informativa (informacional) e criativa dos intervenientes e das condições que os fazem aparecer, com a relativa imodéstia do “tema” que lhes foi proposto» […]
Ernesto responde, acusando-o de cair frequentemente em «tentações», algumas remontando ao mais puro academismo.
[…]
Não há uma resposta directa de Batarda a Ernesto, mas há uma nova crítica ao Grupo Acre, que é, certamente, uma das mais eficazes na desmitificação dos desmitificadores que vinha fazendo nas páginas do Sempre Fixe. Nele comenta-se a ocupação por parte do Grupo Acre e de outros artistas de um palacete em Lisboa, com o objectivo de ali fazerem um Museu de Arte Moderna.
"[…] no meio de argumentações em que são amalgamados o falar em revolução, em povo sedento de Arte ou vice-versa, com referências às actividades vanguardistas, como ainda às graciosas (e nada narcisísticas) previsíveis cedências de peças por parte de artistas (mortos por colaborar), como, dizia, todo este fervilhar de anseios, todo este vibrar de criatividades generosas e desinteressadas sente, assim vanguardisticamente, a necessidade de quê? Pois claro que de um museu.
[…] é, digo, pelo menos curioso que, antecipando-se às ânsias e furores artísticos do povo alfacinha, tenham sido “os artistas” a sentir necessidade de um museu. Dir-me-ão: se ninguém trata de tal, quem melhor que nós, etc. e por aí a diante. Eu direi: não se nega, então eu, que não, que não, a necessidade do dito monumento, pois. Apenas, já estava dito até, será de notar a possibilidade de conotações de autopedestalismo contidas neste gesto, que, por outro lado (e se estivermos virados para isso), poderá ser tomado como “artístico”, numa habitual linha “europeia” e pós-conceptual, isto por mor das tais referências cultas.
[…] Qual a “participação popular” esperada, prevista ou desejada? […]
Se não ficarem com o prédio, que tal sugerir ao povo da capital que, em massa, de archote em punho, indignado mas sempre doidinho por quadros a óleo e gessos patinados, se levante e ocupe, conquiste um palacete qualquer, ou este mesmo, e o entregue entre lágrimas aos seus artistas queridos? Será de começar já a agitpropar por isto?
[…] Povo de Lisboa, os artistas plásticos querem ofertar-te obras de arte. A tua resposta estará na tua mais espontânea indiferença ou no teu mais incondicional apoio. Se estás neste último pé esperamos-te a manifestar, com diplomas de artista, retratos do Almada Negreiros, cravos vermelhos, o presente número do Fixe, reproduções do Querubim Lapa e tarjetas, a distribuir, com os dizeres: «a Arte não morreu, já temos o museu», ou coisa que o valha […].
Que a paz seja convosco, que o génio impere na dómus mendôncica, que os artistas por lá dêem tudo por tudo. Caso não consigam permanência, irmãos amantíssimos, reivindiquemos em uníssono com o já convocado povo lisboeta, uma qualquer forma de substituição. Porque não, por exemplo (Maomé e a montanha), na impossibilidade do solar (caramba!), um sistema do género Bibliotecas Itinerantes?
Seria uma engenhosa forma de levar a Arte à Brandoa ou ao Intendente, à Travessa do Fala-Só ou ao Entalado, que permitiria no fictício caso da Srª D. Angélica Moreira, doméstica e moradora no nº 312, 7ºF da Travessa do Enviado de Inglaterra, inscrita nos artistas com três meses de antecedência, ser agradavelmente surpreendida às nove e meia em ponto da manhã de uma quarta-feira, pelo piquete de urgência do Serviço Museus Vivos e Abertos do Conselho Visual Revolucionário, que, sorridente, lhe anunciaria os dois últimos Nikias, uma cópia da mais recente palestra de Sallete Tavares, a gravura tão chistosa de Figueiredo Sobral, ou o Conduto de 1958 que ela tinha requisitado. Angélica furtaria assim à lida da casa aquele tão desejado quarto de hora, enquanto um grupo intervencionista-vanguardista-envolvimentista a brindaria em paralelo com uma actuação ao vivo e ao domicílio. […]”

*

Porém, Eduardo Batarda não se limitava à palavra escrita nesta desmitificação dos desmitificadores. As suas pinturas destes anos — aguarelas de cores saturadas, pormenorizadas ao nível do detalhe quase microscópico, com recurso a uma figuração bebida nos comics — também tratam, sobretudo, de arte. Fazem-no, porém, aglutinando os comentários à história de arte com várias outras referências eruditas e populares (políticas, literárias, cinéfilas, pornográficas, autobiográficas, etc.), misturando-os sem distinção hierárquica, naquilo que é claramente uma influência da Pop britânica, que de resto esteve muito presente na sua formação londrina. E esta mistura funciona não só ao nível imagético, mas também com a palavra escrita, pois por entre as figuras e situações satíricas que Batarda desenha, surgem frases, ou palavras, que numa primeira leitura têm a aparente função de legendas das figuras. No entanto, constata-se, em variados casos, que a sua presença é uma intromissão desconcertante no quadro, com poder evocativo e associativo entre temas totalmente díspares.
[…]
É na montagem de referências, no jogo de espelhos entre citações, no entrelaçamento entre farsa e verdade que Batarda denuncia os problemas postos pela arte contemporânea e expõe a sua própria fragilidade enquanto comentador das artes por via pictórica. Tal como em F for Fake, é através da manipulação de informação, do forjar de associações, ou da falsificação de citações que são colocadas as mais incómodas questões à arte. O falso é usado para desmascarar o falso.

*

«WHEN the flush of a newborn sun fell first on Eden's green and gold,
Our father Adam sat under the Tree and scratched with a stick in the mold;
And the first rude sketch that the world had seen was joy to his mighty heart,
Till the Devil whispered behind the leaves: “It’s pretty, but is it Art?”»
Rudyard Kipling, The Conundrum of the Workshops

[…] Na sua crítica, escrita e pintada, Eduardo Batarda coloca esta interrogação para tudo quanto comenta, mas sobretudo a si mesmo, à sua pintura.
Batarda mostra o falso das propostas artísticas que propunham revolucionar a recepção da arte, tal como estas haviam denunciado os mecanismos de funcionamento das vanguardas tradicionais e sua progressiva academização. Mas seria possível regressar à forma como se fazia pintura antes da emergência das propostas conceptuais e experimentais? A pintura de Batarda responde que não. Porque esta componente de leitura, estas narrativas que enformam as suas aguarelas, espelham elas próprias a inevitável influência que aquelas propostas tiveram sobre si. A capacidade da pintura incarnar o texto, funcionando como crítica, ensaio, reflexão sobre arte, a possibilidade de encarar o comentário teórico à arte como obra de arte em si mesmo, provém, nada mais, dos alvos das suas críticas. Batarda nega, também ele, o estatuto meramente visual da pintura, introduzindo-lhe uma componente linguística essencial e utilizando-a sempre, em última análise, como tautologia auto-referencial . A pintura toma o lugar de um texto crítico, e no entanto vai para além do texto escrito. Enquanto imagem, enquanto combinação de imagem e palavra, imagem/legenda, a crítica de arte adquire um carácter lúdico, não deixando de ser mordaz, eficaz e eloquente, mas permitindo a ausência de uma argumentação que defina uma alternativa. O seu discurso existe a partir de um vazio (de utopia, de ideologia, de crença).
Se Batarda dispara em todas as direcções na sua pintura, muitas vezes a sátira última a descortinar nas aguarelas é a si próprio, e à sua condição de pintor. Pois é através da crítica a outrem que alcança a autocrítica mais feroz: a da impossibilidade da pintura, a do vazio a partir do qual se constrói o seu discurso pictórico, a da incapacidade de se afirmar sem ser através da negação dos outros. É a ideia de morte da pintura que é constantemente comentada e vivida nos seus quadros, e também parodiada. O luto é curto e também ele é uma farsa: a pintura seguinte, a impossibilidade de parar de pintar, provam-no.

Em La Ricotta (1962) de Pier Paolo Pasolini, com Orson Welles no papel de um realizador de cinema que faz um filme sobre a Paixão de Cristo com actores amadores, o homem que fazia de ladrão bom, um pobre esfomeado, acaba por morrer de indigestão, preso à cruz onde devia representar o seu papel. E o realizador, Welles, repara então nele e diz: «morrer foi a única forma de afirmar que também ele estava vivo».
Nas aguarelas de Batarda (e na sua pintura posterior), morrer repetidamente é também a única forma da pintura provar que está viva.

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