quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Uma entrada para Entrada. Amadeo, a historiografia e os territórios da pintura

por Joana Cunha Leal

[Excertos do texto a publicar na revista Intervalo. - N. 4 (no prelo)
]

[...] voltando ao caso específico de Amadeo, quero reforçar a ideia da desajustada insularidade a que ambas as leituras votam a sua pintura. Creio mesmo que esse fechamento produziu uma inesperada incapacidade de ver as obras, porque eliminou à partida a possibilidade de uma leitura referenciada num contexto (já vimos como a ideia de uma meta-pintura, desconectada do referente externo, não deixa de produzir alguma perplexidade perante obras como Caixa registadora ou Coty). Há como que a interposição de um ecrã entre o observador e pinturas como Entrada, um ecrã que impede de ver – não se vê de todo –, por exemplo, que o pequeno pedaço de vidro rectangular incrustado um pouco à esquerda do centro da tela tem as cores da bandeira portuguesa…
Recupero aqui, então, a descrição de Rui Afonso Santos, onde encontramos uma chamada de atenção para uma série de novos elementos da pintura, nomeadamente, “uma misteriosa máquina, tipo caixa registadora, com o número 2 inscrito e com ossos em vez de chaves” que “emite uma forte luz que atrai os insectos e o sinal com a palavra ENTRADA”. A bandeira de Portugal que R.A. Santos não viu está representada precisamente no centro dessa misteriosa máquina, que, quanto a mim, pode ser também lida como uma representação (metonímica) de um transatlântico. Passo a explicar.
Creio que encontramos em Entrada uma série de signos que, em conjunto, nos oferecem uma narrativa, por fragmentos, da entrada de Portugal (e dos Estados Unidos, como veremos) na 1ª Grande Guerra. Esta narrativa terá tido muito provavelmente um carácter comemorativo – é conhecido o entusiasmo militarista que Amadeo partilha com os artistas da sua geração –, mas inclui também a referência ao episódio perturbador e, à distância, caricatural, da acusação de espionagem que nesse contexto recaiu sobre Sonia Delaunay – episódio em que Amadeo esteve fortemente envolvido, responsável maior que foi pela defesa de Sonia .
Remonta-se assim aos primeiros dias Abril de 1916, quando um denunciador dá como certa, a troco de 3 000 francos de recompensa, a passagem de informação encriptada por Sonia aos submarinos alemães situados ao largo do Atlântico a partir dos célebres ‘discos simultâneos’. Nas palavras de P. Ferreira:
“Robert Delaunay ayant dû répondre à une convocation de conseil de révision [relacionado com a sua dispensa de serviço militar], le couple […] a quitté Vila do Conde pour Vigo. Environs trois semaines plus tard, Sonia revient à Vila do Conde afin de préparer une malle qu’elle désire faire transporter à Vigo par les soins de Beatris [sic], qui doit partir la première. Ceci fait, elle se rend à Porto pour faire renouveler son passeport. C’est alors qu’on lui signifie qu’elle est sous le coup d’une accusation d’espionnage, émanant, croit-on, d’un secrétaire du Consulat de France, désireux de toucher la prime de 3 000 francs-or, récompense attribuée, en ce temps de guerre, à ceux qui démasquent les ennemis de la patrie. Cette dénonciation s’appuie sur le fait que les Delaunay sont venus s’installer tout près du rivage dans le but de communiquer des renseignements aux sous-marins allemands qui croisent au large, en utilisant, comme signaux, les célèbres ‘disques simultanés’, qui sont des éléments essetiels de leurs tableaux. Si saugrenue que nous paraisse la chose avex le recul des années, il ne faut pas oublier que la psychose de ‘espionnite’ régnait alors partout” (cf. P. Ferreira, 1972: 52-53) .

São reconhecíveis, na tela de Amadeo, a torre e o periscópio de um submarino com as cores alemãs enquadrados pelo jacto de luz que nasce no centro da composição e desce até ao letreiro com a palavra ENTRADA, a sugestão de um interior iluminado por uma lâmpada eléctrica desenhada a partir do catálogo da Wotan – a que Rui Afonso Santos (1999: 176) se referira como uma espécie de pega ou um puxador – e separado da escuridão nocturna pelas linhas horizontais de uma persiana dourada – que na mesma descrição é identificada como um “instrumento disposto horizontalmente”. Lá estão também os discos de cor (com os insectos ‘na mouche’) que, partindo das investigações órficas de Robert Delaunay, a pintura de Sónia, tal como a do próprio Amadeo, tinham incorporado. E mesmo os números que Amadeo inscreve no topo da tela parecem remeter para a soma atribuível ao acusador. Lá está finalmente, desenhado sobre fundo azul, e aqui reencontro o jacto de luz central na sua fonte, o perfil do transatlântico, muito possivelmente o Lusitania – as cores da bandeira nacional pintadas sobre um rectângulo de vidro inscrustado no casco sugerem o nome do barco inglês –, com as suas imponentes quatro torres (duas pintadas, as restantes duas evocadas pelo o número 2) afundado por um submarino alemão, num episódio trágico que despoletou a intervenção militar dos EUA na Guerra . Porém, é bom não esquecer que a própria entrada de Portugal na Guerra esteve, no imediato, associada à nacionalização dos barcos alemães retidos nos portos portugueses desde o início do conflito.
[...]
Para além de BRUT 300 TSF, onde o motivo da telegrafia sem fios se associa à vista parcial de um jornal pintado, e dos já mencionados Máquina registadora e Coty, é em em Zinc (Pintura 195 do Catálogo Raisonné; Col. Engº Elídio Pinho, Porto) que essa referência contextual [da Guerra] volta a ser mais forte. Esta tela integra, para além da representação de “violas, ‘discos’, uma cabeça carnalmente pintada, e espelhos colados”, a “imagem de um Cristo crucificado sob a palavra ‘zinc’ (certamente no sentido de ‘taberna’ no calão francês)” (J.-A. França, 1986 [1957]: 131). Com esta imagem Amadeo evoca de perto o potencial de crueza do pintor chinês imaginado por Blaise Cendrars num café (taberna?) nova iorquino povoado de chineses em “Les Paquês” (1912).
Escreve Cendrars: “Ho-Kousai pintou os cem aspectos de uma montanha. Como seria a vossa Face pintada por um chinês?…/ Esta ideia, Senhor, fez-me primeiro sorrir. Via-vos em ponto pequeno no vosso martírio./ O pintor, pintaria o vosso tormento Com maior crueza do que os nossos pintores do Ocidente. / Lâminas denteadas serrariam a vossa carne, Tenazes e cardadoras abririam estrias nos vossos nervos”.
Amadeo refere directamente este poema em carta a Robert Delaunay datada por P. Ferreira (1972: 71-72) de 16 de Junho de 1916. Uma carta onde, curiosamente, Amadeo dá conta da sua dificuldade em encontrar alumínio e folha de flandres para a execução de escantilhões, e em que se queixa “quant à la feuille, les idiots m’envoient un échantillon de zinc.” (idem: 72). Este Cristo de Amadeo trespassado de tenazes e cardadoras, a que J.-A. França atribui uma “violência expressionista” (1992: 25), remete-nos também para o crucifixo devocional que acompanhou os combatentes do CEP na frente de batalha. Nas imagens que circulam das “Trincheiras portuguesas” em periódicos de grande tiragem como a Ilustração Portuguesa, a imagem do Cristo de Neue Chapelle aparece diversas vezes acompanhado com legendas que o apresentam como: “Um Cristo respeitado pelas granadas, atiradas pelos alemães contra as trincheiras portuguesas” (7 Jan. 1918: 1). A imagem do alto crucifixo que domina a paisagem da primeira linha do front reaparece na Ilustração Portuguesa a 21 de Jan. e 6 de Maio de 1918. Esta última imagem não contempla os danos que lhe infligiram os bombardeamentos de 9 de Abril (La Lys) e que estão na origem da sua transformação no mítico e muito, muito impressionante “Cristo das Trincheiras” (actualmente em exposição no Túmulo do Soldado Desconhecido no Mosteiro da Batalha)."

1 comentário:

  1. Boa tarde,
    estou interessada em consultar todo o artigo sobre a "Entrada" de Amadeo, é possível dizer-me onde posso consultar/comprar a revista na zona de Lisboa (isto, se ainda for possível)?
    Cumprimentos,
    Andreia S.

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